Paulo Henrique Thiengo - ABPF-ES
Na semana passada recebi a visita de dois senhores, representando a inventariante da extinta Rede Ferroviária Federal (RFFSA). Queriam vistoriar o material que está em meu poder desde 1996 (telégrafos, relógios de parede tipo "oito", carimbadores de passagens, bilheteiras, cofres, móveis, telefone de parede e mais alguns objetos). (Também naquele ano estive em Campos, após avisado que estavam queimando documentos históricos da ferrovia. Trouxe de lá meia kombi em documentos; me arrependi de não a ter lotado).
Tais materiais foram conseguidos graças a um convênio da minha entidade, a Associação Brasileira de Preservação Ferroviária (ABPF), com a RFFSA, por ocasião da privatização desta. Na época, percorri todas as estações do sul do estado, relacionei e fotografei o que existia e pedi o material em nome da ABPF. O pedido foi deferido, mas quando fomos retirar o material (acompanhado de um policial ferroviário - sim, esta profissão já existiu), vários deles haviam sido roubados (como os objetos em Ipê-Açú).
Inicialmente, a intenção era implantar um museu na estação de Cachoeiro, tendo para isto enviado abaixo-assinado ao prefeito de então ainda em 1994 (as primeiras assinaturas eram do Paulo Herkenhoff e do Manoel Maciel (protoco n. 006355/94, processo 305923, de junho de 1994). Aguardo resposta até hoje. Na época, já possuía farto material, constituído principalmente de milhares de fotos e documentos referentes à ferrovia, incluindo fotos da construção da linha na serra de Soturno.
Durante todo o ano de 1996, trabalhei praticamente todos os finais de semana na restauração da estação de Jaciguá, para onde o material da RFFSA foi levado, na intenção de implantar ali um Centro Ferroviário de Cultura, projeto desenvolvido em parceria da RFFSA com a ABPF. Nessa época, minha filha recém nascida ficou sem o pai durante TODOS os finais de semana daquele ano (incluindo carnaval, dias das mães e dos pais) dos 6 meses até um ano e meio de idade. Burrice incomensurável cometida em razão de um idealismo desmedido. Muito me arrependo disto atualmente.
No início de 2002, dada a falta de interesse da nova administração de Vargem Alta, voltei a oferecer TODO o acerco, e gratuitamente, para a prefeitura de Cachoeiro (processo 2385/2002 - complementado em novembro com novas informações - processo 20203/2002 - ambos também sem resposta até hoje - enviei cartas ao Ferraço, na mesma época, com igual resultado). Basicamente, oferecia a oportunidade de Cachoeiro ter um museu de verdade e com atração única: Uma maquete histórica, bitola HO do ferreomodelismo, representando trechos do sistema ferroviário do sul do estado em 1937 (antes de 1935 não havia as oficinas da E. F. Itapemirim na Barra e depois de 1937 não tínhamos mais os bondes em Cachoeiro) que seria construída no segundo andar da estação. Através da venda de publicidade, no estilo da época, nas laterais dos vagões, todo o custo de implantação e manutenção da maquete seria coberto com folga. Cheguei a comprar 23 carros de passageiros da Leopoldina, fabricados fielmente pelo Marcelo Lordeiro, para esta maquete. Estão guardados, desmontados, até hoje, juntamente com inúmeros outros modelos de vagões antigos, todos não mais fabricados.
Consegui, também, em comodato, duas locomotivas diesel-mecânicas, sem motor, bitola 60 cm, rodeiros que dariam para construir dois carros de passageiros (vagão é para carga) e três desvios completos. Desmontei e reformei as locomotivas em Jaciguá. Quando fui convidado para trabalhar na administração Valadão, inicialmente como Diretor do Patrimônio Histórico e depois como gerente do Museu Ferroviário (que constituímos no papel, através de lei enviada à Câmara e aprovada por unanimidade), trouxe todo material para Cachoeiro (menos dois sinos, roubados dentro da estação de Jaciguá).
O que seria a redenção para um apaixonado pela ferrovia transformou-se num misto de decepção, angústia, raiva e desapontamento. Apesar do então secretário, José Carlos Dias, ter tido a nobre iniciativa de retirar a secretaria de lá, não tivemos como impedir seu uso como "ponto de apoio" para eventos realizados defronte a ela. Tinha que desocupar tudo para abrir espaço para a PM, para distribuição de camisinhas, para o pessoal (DE FORA!!!!) que montava palanque e arquibancadas dormir por lá e até para assar carne de porco e peixe na sala do Chefe da Estação, onde também eram guardadas as bebidas. Numa corrida de kart, guardaram lá o combustível (local mais "seguro" para isto, disseram). O pessoal da elétrica (pré-Citeluz) ficou lá por meses, por conta do mutirão para trocar lâmpadas. Enfim, o lugar servia para tudo (até para central de rádio da GM houve pedido), menos para a cultura.
Antes de ter sido "saído" do cargo, retirei todo o material de lá. Já estava comigo a impressora do Correio do Sul, de 1877, que retirei do local apenas doze horas antes de ir para o ferro-velho, com a ajuda de um então cunhado, com enorme sacrifício e até risco de vida (ela pesa uns 1.500 kg). Também estão comigo os cadernos que sobreviveram do jornal e os clichês (ao Google, jovens - gracias Toninho!).
Não, não acho certo estar com todo este material. Meu sonho, aliás, o sonho deste imbecil que vos escreve, que esqueceu de pensar primeiramente em si e na família, é que tudo isto estivesse exposto ao público. O problema é: Onde expor? Infelizmente, a Casa dos Braga AINDA abriga uma biblioteca (que já deveria estar funcionando no Bernardino Monteiro). Até a atual secretária de cultura, à época ainda na comissão de transição, achou um absurdo suas instalações. Não tem como oferecer bom serviço naquele espaço exíguo e histórico. Aquela casa é da família Braga, do Cel. Francisco Braga, do Rubem (100 anos em janeiro próximo), do Armando e do Jeronymo, fundadores do Correio do Sul, do Newton, de dona Gracinha, de seu marido Bolívar de Abreu, filho do ex-prefeito Fernando de Abreu. Do Zig, enterrado ao lado do pé de fruta-pão (que vai acabar morrendo por conta de uma muda que cresce bem junto a seu tronco) e de todo o significado daquela casa para a cidade.
A saudosa Casa da Memória foi reformada para abrigar... um ponto de apoio a turistas e uma lojinha de artesanato! Tenham a santa paciência! O lugar deles é na ENTRADA da cidade. Por conta destes estupros contra o histórico local, quase todo o acervo do município foi perdido para sempre. Sobraram apenas algumas fotos, que guardei com carinho na estação.
Apesar de alguns acertos (que aplaudo!), a política cultural desta administração segue o mesmo "modus operandi" do governo como um todo: foco no varejo, nos problemas de cada local, em soluções pulverizadas. Falta ver a cidade como um todo, em todas as áreas. Inclusive na Cultura. Por isso o abandono da estação, da Casa dos Braga e da perda da Casa da Memória. Em Coutinho, temos a estação mais antiga do ES (e também a caixa d'água - hoje residência, a Casa de Turma e do Bombeiro), todas originais de 1887! Fico triste por mim e pelos demais genuinamente interessados em cultura. Apresentada por um amigo, não tive coragem de dizer à viúva do Renê Nogueira o que aconteceu com o acervo doado por seu marido...
Voltando ao material da extinta RFFSA, ele será automaticamente repassado ao IPHAN, que o cederá a alguma prefeitura mais bem intencionada deste imenso país. Esta foi apenas mais uma das várias pauladas que levei neste início de ano. Por conta disto, tive uma estafa que quase destruiu meus neurônios e crise de depressão, contornada a base de remédios.
A primeira porrada foi em São Vicente, por ocasião da 'comemoração' do terceiro aniversário da enchente, em 22 de janeiro. Para sairmos da posição de eternos pedintes, imaginei um seminário, visando o desenvolvimento sustentável do distrito. Convidei Leandro Carnieli para uma palestra, o que fez com a maior boa vontade. Infelizmente, a participação dos moradores foi mínima. Passei a maior vergonha por isto. Para piorar, setores da prefeitura ficaram com ciúmes dos termos que usei num convite ao prefeito e acharam que estava valorizando o Leandro e que aquele seria meramente expectador; tanto que nem participou.
Na época estávamos com um problema em trecho do córrego, na propriedade vizinha à minha chácara. A enchente aprofundou um valão existente, escavado durante 100 anos por desvio do córrego principal. Fiquei esperançoso com o interesse da secretaria de meio-ambiente em fazer o replantio de árvores no leito do córrego, mas isto não seria realizado por empresas do setor de rochas, como imaginávamos, mas por um VOLUNTÁRIO!
A solução foi comprar dez canos de PVC 300 mm, para o que muitos concordaram em ajudar a pagar. Tão logo surgiram laudos e relatórios de porta de venda "provando" ser inviável tal empreendimento, quase todos pularam fora. Precisei recorrer a dois parentes para pagar os canos (R$ 2.700,00). Eu e mais um ou dois vizinhos teremos de nos virar para assenta-los.
Neste mês, recebemos tristes notícias do IDURB, responsável pela construção das casas no distrito. Além de faltar documentação das 22 já construídas (cobradas à prefeitura desde julho passado), o prazo do convênio quase não foi renovado (o foi por apenas 90 dias, por especial deferência da Helena Zorzal, presidente do órgão) e as 6 que faltam, justamente para as famílias mais necessitadas, NÃO serão construídas agora. Quaaaaaannnnnddddo a documentação dos lotes sair, coisa de mais de seis meses, será feito novo convênio. Enfim, casas para as famílias mais necessitadas, que perderam tudo na enchente de TRÊS anos atrás, só em 2013!
Por conta disto, nossa associação está esvaziada, perdemos nossa credibilidade (e também diretores, que estão pedindo para sair) e não temos perspectiva de melhorias no horizonte, visto que também perdemos nossa única fonte de renda, com a proibição dos bingos em festas. O distrito depende do café e do leite, os jovens precisam sair em busca de melhores condições e até o crack já chegou por lá.
Até levar essa rasteira com direito a chute no estômago enquanto caído, imaginei levar para lá o agroturismo, como nova opção de renda para os moradores. Minha chácara seria usada como piloto para demonstrar a viabilidade da coisa. Além do moinho (parado desde dezembro, pois a água precisou ser desviada para o córrego principal), construí um barracão para abrigar outros mecanismos movidos a água e comecei a reformar outro, para abrigar uma roda d'água que acionaria o engenho (para moer cana e fabricar açúcar mascavo e rapadura).
Quem foi à caminhada organizada pela prefeitura deve ter comprovado a beleza do lugar. A intenção seria construir o Museu da Roça (para onde levaria o material citado acima mais uma coleção enorme de moedas antigas, de máquinas de costura e outros) para criar demanda para outras iniciativas de agroturismo. Com gente lá todo final de semana, criam-se oportunidades para um restaurante (ainda não temos), pousadas, doces, compotas, biscoitos e outros produtos, além de atrair o público interessado em caminhadas, cavalgadas (sem trio elétrico atrás) e outras atividades ligadas à natureza.
Cheguei a começar a preparar um vídeo que seria entregue a todas as famílias do lugar, onde procuraria demonstrar a viabilidade do agroturismo e a necessidade de preparar o jovem que precisa sair do distrito (cursos, palestra, sala de informática, biblioteca, etc.). Infelizmente, falhei nesta luta. Recebemos críticas contundentes até pela organização da caminhada. Acontece que nossa comunidade está destruída em todos os sentidos. Nem uma simples caminhada conseguimos organizar. Por este motivo pedimos o cancelamento da próxima, que seria em 15 de abril.
Particularmente, penso que um lugar assim seria prato cheio para o administrador com visão. Seria a mesma estória dos dois vendedores de sapatos enviados a uma nova região, para sondagens. Um voltou sugerindo abandonar a área, já que "ninguém lá usa sapatos". O outro voltou entusiasmado, já que "ninguém lá usa sapatos AINDA!". O PT, notadamente o Lula, conseguiu enormes vitórias em São Paulo agindo como o segundo vendedor. Eu também pensava assim, mas acho que estou enganado.
De qualquer forma, agradeço ao Mansur pelo espaço cedido (não quis incomodar o Wagner) e gostaria muito de discutir este assunto com quem se interessa por estas questões e até mesmo nos ajudar nesta luta. Confesso que estou completamente perdido no momento. E muitíssimo desanimado. Neste domingo teremos reunião da Associação, aberta ao público, às 7:30 da manhã. Quem quiser participar, com sugestões, apoio ou críticas, será bem vindo. (“Feliz de quem entende que é preciso mudar muito para ser sempre o mesmo”. Dom Helder Câmara)
Paulo Henrique Thiengo
Publicado na Conexão Mansur de 31/03/2012
Jornal O Fato